sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Filosofia e Ideologia

por Rodrigo Pedroso

Em nosso artigo anterior, tínhamos exibido um exemplo de como o modo ideológico de ver as coisas pode distorcer a apreensão da realidade. Na presente comunicação, temos por objetivo descobrir como se distingue uma avaliação dos fatos feita segundo uma perspectiva filosófica de uma efetuada desde uma perspectiva ideológica.

O traço essencial da atitude ideológica é conceder mais importância às idéias do que às coisas. Ou seja, ao contrário da sã Filosofia, a ideologia pressupõe sempre uma separação entre coisas e idéias. Enquanto na Filosofia, se pretende chegar à verdade das coisas através das idéias, na ideologia estas adquirem valor independente das coisas a que se referem, tomando vida própria. Assim sendo, a atitude ideológica exige, como condição necessária para existir, um erro fundamental a respeito da inteligência humana.

O filósofo espanhol Xavier Zubiri definia a verdade como a posse intelectual do ser das coisas. Toda a Filosofia de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino enfoca a inteligência humana não tanto como uma faculdade meramente representativa ou operativa, mas fundamentalmente como faculdade apreensiva. Mais do que produtora de idéias, a inteligência é uma faculdade que capta algo. E o que é esse algo que a inteligência percebe? Ora, a Filosofia demonstra que o objeto formal da inteligência (isto é, aquilo que a inteligência capta em primeiro lugar e em razão do qual capta tudo o mais) é o ser. A inteligência capta o ser das coisas, e as coisas são captadas pela inteligência na medida em que têm ser. Quando a idéia (forma inteligida) produzida pela inteligência corresponde à idéia (forma inteligível) existente na coisa, temos a verdade -- adequatio rei et intellectus, segundo o adágio escolástico.

Dentro dessa concepção fica até estranho pensar a respeito de uma contraposição entre idéias e coisas. Semelhante contraposição só pode ocorrer depois de as idéias terem perdido qualquer referência às coisas mesmas. Assim, por mais coerente e lógico que possa ser um sistema ideológico, seus postulados e conceitos fundamentais terão sempre mais a ver com a fantasia e o arbítrio do que com a própria inteligência. Um exemplo disso é a política moderna, fundada por Hobbes, Locke e Rousseau sobre os conceitos de estado de natureza e contrato social. Ora, estas são noções puramente quiméricas, destituídas de qualquer fundamento na realidade -- entes de razão sine fundamento in re, como diriam os escolásticos. Todavia, sobre esses conceitos vazios se construíram estados, se fizeram constituições e se organizaram muitas das instituições que até hoje nos dirigem.

Partindo de conceitos fantásticos para compor um sistema de idéias capaz de orientar a ação política, a ideologia ao invés de explicar a realidade da vida social, de fato a encobre à compreensão humana. Dando a questão por resolvida, não se pergunta sobre a verdadeira natureza da sociedade, que passa a ser organizada de acordo com princípios artificiais e preconcebidos.

Uma vez que a ideologia parte não da realidade e da experiência, mas da fantasia e do arbítrio, não pode ela deixar de ser dogmática. É certo que a religião também tem seus dogmas, porém os dogmas da religião católica se referem a realidades que estão acima do alcance da inteligência humana e que admitimos como verdadeiras por fé na Revelação divina -- Deus, que é a própria Verdade, não pode mentir. Os dogmas da ideologia, entretanto, se referem a realidades que estão no âmbito de investigação da razão humana. Enquanto os dogmas da religião elevam o homem a realidades que ele desconhece, os dogmas da ideologia o alienam das coisas que ele pode conhecer naturalmente.

É a ideologia, pois, um sucedâneo perverso da religião. E enquanto a fé nos dogmas da Religião está alicerçada na infalível autoridade divina, que não se engana nem pode enganar, a fé nos dogmas da ideologia só pode fundamentar-se no apego afetivo e sentimental dos seus sequazes. As ideologias têm por fundamento um dos amores mais esquisitos, que é o amor por idéias. Aliás, é próprio da atitude ideológica amar mais as idéias do que as pessoas concretas. O filósofo não ama idéias, ama a verdade; por isso um verdadeiro filósofo se alegra quando, ao perceber que estava enganado, descobre nova verdade. O ideólogo, pelo contrário, se entristece quando os argumentos ou os fatos desmentem as suas idéias tão queridas, a ponto de muitas vezes cometer o absurdo rejeitar a verdade para ficar com as idéias que ama. É por esta razão que o processo de se desvencilhar de uma ideologia dói tanto -- é como terminar um relacionamento amoroso.

Porque partem de princípios arbitrários, as ideologias quebram a relação entre juízos de valor e juízos de realidade, enquanto que na Filosofia os primeiros sempre estão fundamentados nos segundos. Isso faz com que as ideologias, apesar de dogmáticas, venham a conduzir a cultura a um relativismo axiológico cada vez maior.

Outra inversão característica das ideologias é determinar a teoria pela prática, explicar a realidade com base no mundo que se quer moldar. Tenta-se deduzir o ser a partir do dever-ser. A Filosofia, pelo contrário, procura determinar o dever-ser partindo do conhecimento do ser. É da natureza do homem que a Filosofia colhe a natureza da sociedade, e é a partir do entendimento do fim natural da sociedade que o filósofo vai dizer como ela deve ser.

Tomando representações puramente mentais como realidades concretas, e fazendo delas objetos de amor e devoção, a atitude ideológica é um vício da inteligência e uma tentação permanente para o homem moderno. E somente poderá ser vencida pela afirmação do valor da inteligência e da sua capacidade para compreender a verdade das coisas.

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